ALDO LEOPOLD

Odyssey

"A jornada de um único átomo

pinta um retrato incrível

da teia da vida"


ODISSEIA*


X havia passado uma longa estadia na borda de uma pedra calcária, desde que os mares paleozóicos cobriam a terra. O tempo, para um átomo preso em uma rocha, não passa.


A viagem começa quando uma raiz de carvalho corta uma fenda na rocha. No decorrer de um século a rocha decaiu e, então X foi sugado para dentro do mundo dos seres vivos. Ele ajudou a construir uma flor, que se tornou uma bolota (fruto do carvalho), que engorda um cervo, que alimenta um índio, tudo isso em um único ano. De seu lugar nos ossos do índio, X se juntou novamente em perseguição e fuga, festa e fome, esperança e medo. Ele sentiu essas coisas como mudanças nos pequenos impulsos químicos que movimentam, atemporalmente, a cada átomo. Quando o índio se despediu da pradaria, X submergiu brevemente no subsolo, apenas para embarcar em uma segunda viagem pela corrente sanguínea da terra.


Dessa vez, uma raiz de gramínea o sugou e o alojou em uma folha que percorria as ondas verdes da pradaria de junho, compartilhando a tarefa comum de acumular luz solar. E essa folha também cumpria uma tarefa incomum: proteger com sombras os ovos de uma tarambola (pássaro marinho). A tarambola extática, pairando no alto, derramava elogios por algo tão perfeito: talvez os ovos, talvez as sombras, ou talvez a névoa rosa que jazia na pradaria.


Quando as tarambolas lançaram asas para a Argentina, todas as gramíneas se despediram com novos brotos. Quando os primeiros gansos saíram do norte e todas as gramíneas brilhavam em vermelho-vinho, um roedor cortou a folha em que X jazia e a enterrou em um ninho subterrâneo. Mas uma raposa logo deu cabo do camundongo, fungos e bactérias desmontaram o ninho e novamente X volta ao solo, livre e desempedido.


Em seguida, vive em um tufo de grama de aveia, num búfalo, num resto de búfalo e novamente no solo. Em seguida, numa erva, num coelho e numa coruja e, então, num tufo de esporobólus (outra gramínea).


Todas as rotinas chegam ao fim; e esta termina com um incêndio nas pradarias, que reduziu as plantas a fumaça, gás e cinzas. Os átomos de fósforo e potássio permaneceram nas cinzas, mas os átomos de nitrogênio se foram com o vento. Um espectador pode, a essa altura, ter previsto um fim precoce do drama biótico, pois, com os incêndios esgotando o nitrogênio, o solo pode ter perdido suas plantas e se exaurir.


Entretanto, a pradaria tinha duas opções na manga. Fogos rareavam suas ervas, mas engrossavam a população de leguminosas; trevo da pradaria, trevo do mato, feijão selvagem, ervilhas, cada um carregando suas próprias bactérias alojadas em nódulos em suas raízes. Cada nódulo bombeando nitrogênio do ar para a planta e, finalmente, para o solo. Assim, o então exaurido solo das pradarias ganhou mais nitrogênio de suas leguminosas do que pagou com os seus incêndios. O fato de a pradaria ser rica é conhecido por todo cervo; e, por que as pradarias são ricas é uma pergunta raramente feita por nós, humanos.


Entre cada uma de suas excursões pela biota, X jazia no solo e era carregado pelas chuvas, polegada a polegada, ladeira abaixo. As plantas vivas retardavam a lavagem segurando alguns átomos; e, nas plantas mortas, alguns aderiam aos tecidos deteriorados. Os animais comiam as plantas e as carregavam brevemente para cima ou para baixo, dependendo de terem morrido ou defecado mais para o alto ou nos vales.. Nenhum animal sabia que a altitude de sua morte era mais importante do que sua maneira de morrer. Assim, uma raposa pegou um esquilo em um prado, carregando X para cima de um penhasco, onde uma águia furtiva o devorou. A raposa moribunda sentiu o fim de sua jornada, mas não o novo começo na odisseia de um átomo.


Um Ameríndio acabou herdando as plumas da águia e, com elas, o destino quis que se tornassem objetos importantes para tais povos. Não lhe ocorreu que eles estivessem lançando dados contra a gravidade; que ratos e homens, solos e sons, podem ser apenas maneiras de retardar a marcha de átomos rumo ao mar.


Certo ano, enquanto X estava deitado num choupo à beira do rio, acabou comido por um castor, um animal que sempre se alimenta mais alto do que onde morre. O castor passou fome quando o lago secou durante uma geada amarga. X montou a carcaça flutuante na primavera, perdendo mais altitude a cada hora do que em um século. Ele acabou no lodo de um remanso, onde alimentou um lagostim, um guaxinim e depois um índio, que se despediu da vida num monte às margens do rio. Na seguinte primavera um boi derrubou um pedaço da margem e, após uma semana curta de tranquilidade para X, novamente terminou em seu antigo habitat, o mar.


Um átomo em geral, na biota, é muito livre para conhecer a liberdade; um átomo que retorna ao mar irá esquecê-la. Para cada átomo perdido no mar, a pradaria puxa outro para si. A única certeza é de que as criaturas terrestres devem consumir muito, viver rapidamente e morrer com frequência, para que suas perdas não excedam os ganhos do oceano.


É da natureza das raízes buscarem fendas. Assim, quando Y foi libertado de sua porção de rocha, um novo animal havia chegado e começado a refazer a pradaria para se adequar às suas próprias noções de lei e ordem. Um grande raio perturbou a pradaria, e Y começou uma sucessão de tortuosas viagens anuais por uma nova gramínea, chamada trigo.


A velha pradaria vivia com a diversidade de suas plantas e animais, que eram úteis porque a soma total de suas cooperações e competições garantiam a continuidade. Mas o fazendeiro de trigo era um trabalhador de categorias e métricas; para ele apenas trigo e bois eram úteis. Ele viu os pombos inúteis pousarem nas nuvens sobre o trigo e logo limpou o céu. Viu os insetos assumirem o trabalho de furto e usou inseticidas. Não viu a lavagem do solo e erosão provocadas pelo excesso de trigo, exposto às chuvas fortes. Quando os insetos e o solo deteriorado finalmente acabaram com o cultivo de trigo, Y e seus semelhantes já haviam viajado longa distância rio abaixo.


Quando o império do trigo entrou em colapso, o colono arrancou uma folha do antigo livro da pradaria: ele apreendeu a fertilidade do gado, aumentou-a com alfafa que bombeava nitrogênio, que por sua vez atingia as camadas inferiores do solo com as raízes do milho. Ele usou sua alfafa e todas as outras armas novas contra a erosão, não apenas para manter seus antigos arados, mas também para explorar os novos que, por sua vez, precisavam ser mantidos.


Portanto, apesar da alfafa, a terra preta ficou gradualmente mais fina. Engenheiros construíram barragens e terraços para conter a erosão. Engenheiros do exército construíram barragens e represas para limpar a terra fina dos rios. Os rios perdiam forças e então erguiam suas camas, sufocando a navegação. Assim, os engenheiros construíram piscinas como gigantescos lagos de castores e Y desembarcou em uma delas, sua viagem da terra para a água foi concluída em um curto século.


Ao chegar à piscina, Y faz várias viagens através de plantas aquáticas, peixes e aves aquáticas. Mas os engenheiros constroem esgotos e diques e, num nível abaixo deles, vem a pilhagem de todas as colinas distantes e do mar. Os átomos que antes cresceram com as gramíneas para saudar as tarambolas que retornam, agora jazem inertes, confusos, presos em lodo oleoso.


As raízes ainda esgueiram-se entre as rochas. As chuvas ainda caem pelos campos. Os ratos ainda escondem suas lembranças do verão. Os velhos que ajudaram a exterminar os pombos ainda contam a glória das hostes esvoaçantes. Búfalos pretos e brancos entram e saem de celeiros vermelhos, oferecendo passeios gratuitos para átomos itinerantes.



Odyssey, de Aldo Leopold, foi publicado pela primeira vez na edição de maio-junho de 1942 da Audubon. O ensaio apareceu mais tarde em A Sand County Almanac.


*tradução original de

Rodrigo Gobbet

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colaborações intempestivas19/04/2020
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