"Vivemos, sobretudo nos últimos quarenta anos, na quarentena política, cultural e ideológica de um capitalismo fechado sobre si próprio. A quarentena provocada pela pandemia é afinal uma quarentena dentro de outra quarentena."

A pandemia e a quarentena estão a revelar que são possíveis alternativas, que as sociedades se adaptam a novos modos de viver quando tal é necessário e sentido como correspondendo ao bem comum. Esta situação torna-se propícia a que se pense em alternativas ao modo de viver, de produzir, de consumir e de conviver nestes primeiros anos do século XXI. Na ausência de tais alternativas, não será possível evitar a irrupção de novas pandemias, as quais, aliás, como tudo leva a crer, podem ser ainda mais letais do que a atual. Ideias sobre alternativas certamente não faltarão, mas poderão elas conduzir a uma ação política no sentido de as concretizar? No curto prazo, o mais provável é que, finda a quarentena, as pessoas se queiram assegurar de que o mundo que conheceram afinal não desapareceu. Regressarão sofregamente às ruas, ansiosos por voltar a circular livremente. Irão aos jardins, aos restaurantes, aos centros comerciais, visitarão parentes e amigos, regressarão às rotinas que, por mais pesadas e monótonas que tenham sido, parecerão agora leves e sedutoras.

No entanto, o regresso à «normalidade» não será igualmente fácil para todos. Quando se reconstituirão os rendimentos anteriores? Estarão os empregos e os salários à espera e à disposição? Quando se recuperarão os atrasos na educação e nas carreiras? Desaparecerá o Estado de excepção que foi criado para responder à pandemia tão rapidamente quanto a pandemia? Nos casos em que se adotaram medidas de proteção para defender a vida acima dos interesses da economia, o regresso à normalidade implicará deixar de dar prioridade à defesa da vida? Haverá vontade de pensar em alternativas quando a alternativa que se busca é a normalidade que se tinha antes da quarentena? Pensar-se-á que esta normalidade foi a que conduziu à pandemia e conduzirá a outras no futuro?

Ao contrário do que se possa pensar, o imediato pós-quarentena não será um período propício a discutir alternativas, a menos que a normalidade da vida a que as pessoas quiserem regressar não seja de todo possível. Tenhamos em mente que, no período imediatamente anterior à pandemia, havia protestos massivos em muitos países contra as desigualdades sociais, a corrupção e a falta de proteção social. Muito provavelmente, quando terminar a quarentena, os protestos e os saques voltarão, até porque a pobreza e a extrema pobreza vão aumentar. Tal como anteriormente, os governos vão recorrer à repressão até onde for possível, e em qualquer caso procurarão que os cidadãos baixem ainda mais as expectativas e se habituem ao novo normal.

Só com uma nova articulação entre os processos políticos e os processos civilizatórios será possível começar a pensar numa sociedade em que humanidade assuma uma posição mais humilde no planeta que habita. Uma humanidade que se habitue a duas ideias básicas: há muito mais vida no planeta do que a vida humana, já que esta representa apenas 0,01% da vida existente no planeta; a defesa da vida do planeta no seu conjunto é a condição para a continuação da vida da humanidade. De outro modo, se a vida humana continuar a pôr em causa e a destruir todas as outras vidas de que é feito o planeta Terra, é de esperar que essas outras vidas se defendam da agressão causada pela vida humana e o façam por formas cada vez mais letais. Nesse caso, o futuro desta quarentena será um curto intervalo antes das quarentenas futuras.

A nova articulação pressupõe uma viragem epistemológica, cultural e ideológica que sustente as soluções políticas, econômicas e sociais que garantam a continuidade da vida humana digna no planeta. Essa viragem tem múltiplas implicações. A primeira consiste em criar um novo senso comum, a ideia simples e evidente de que sobretudo nos últimos quarenta anos vivemos em quarentena, na quarentena política, cultural e ideológica de um capitalismo fechado sobre si próprio e a das discriminações sem as quais ele não pode subsistir. A quarentena provocada pela pandemia é afinal uma quarentena dentro de outra quarentena. Superaremos a quarentena do capitalismo quando formos capazes de imaginar o planeta como a nossa casa comum. Quando superarmos esta quarentena, estaremos mais livres das quarentenas provocadas por pandemias.