BRUNO LATOUR

ENTREVISTAS

2020


“A ausência de um mundo comum está nos enlouquecendo”, afirma o francês Bruno Latour. Suas duas obras mais recentes apresentam essas ideias de forma complementar: Diante de Gaia: Oito Conferências Sobre a Natureza no Antropoceno mune o leitor de ferramentas filosóficas, enquanto Onde Aterrar? - Como se Orientar Politicamente no Antropoceno funciona como guia de intervenção sobre a conjunção das crises política e ecológica. Os dois livros foram lançados em julho no Brasil.

Na entrevista por chamada de vídeo de sua casa em Paris, Latour afirma que nenhum outro país enfrenta sobreposição de crises tão extremas quanto o Brasil, “onde está visível tudo aquilo que vai ser importante nas próximas décadas”.


ENTREVISTA

Em Diante de Gaia, o sr. aponta o negacionismo climático iniciado nos anos 1990 como raiz para a ascensão da extrema direita, assim como para a negação da ciência e até mesmo da pandemia. Como o sr. chegou a essa relação? 

É bem óbvio que o negacionismo não pode ser justificado por nenhum efeito cognitivo. Há algo por trás da negação da realidade, porque se sua casa está pegando fogo e você diz “não, nada está acontecendo”, sua mente não consegue processar isso. Isso significa, para sua mente, que você terá outra casa para onde você pode se mudar, então você pode deixar essa aqui queimar. Esse negacionismo é como se eu não vivesse no mesmo planeta que você.


Então o desafio climático é chave para entender as múltiplas crises que vivemos hoje? 

Desde os anos 1980 há algo estranho que excede o neoliberalismo. Minha interpretação é bem simples e infelizmente está sendo confirmada pelos acontecimentos no Brasil, na Rússia, nos EUA, na Inglaterra. Trata-se basicamente do escapismo. Uma parte da sociedade decidiu escapar da Terra e isso explica termos essa incrível divisão no mundo. E não tem nada a ver com a clássica divisão entre vermelho e azul, esquerda e direita. A única forma de explicá-la é trazendo para o quadro o que eu chamo de novo regime climático –que não trata só do clima, mas da Terra.


Há uma tendência de se reduzir a pauta do clima à retirada de carbono da atmosfera. Existe o risco de resolvermos a conta climática sem encarar o desafio ecológico?  

Toda vez que alguém tenta limitar a questão do clima à emissão de CO2, acaba falando sobre todo o restante. Pegue só o CO2 e veja onde ele lhe leva. Ele leva a todo lugar.


Quem atua com outras agendas, como a do antirracismo ou do feminismo, também pode entender que essas são as pautas centrais. Como o sr. dialoga com pautas que ganham força? 

É por isso que chamo o que vivemos de novo regime climático: não trata apenas de retirar carbono da atmosfera mas de todas as outras condições da existência. Agora a crise é tamanha que já se entende que o mundo todo vai ser impactado, mas que os mais impactados são aqueles que sofrem com as desigualdades. Fiquei espantado quando soube que seu presidente respondeu que não se importava ou que não podia fazer nada sobre as mortes por coronavírus. Sempre foi básico, até para neandertais, que, se você é um líder, terá que cuidar do seu povo, não pode apenas dizer “que pena, pessoal”. O escapismo é a principal ameaça no mundo. E, comparada a essa ameaça, todas as outras lutas convergem.

Há menos de cinco anos o inimigo para os ecologistas era ainda o modelo de desenvolvimento que ignora os limites planetários. Agora nós percebemos que o modernismo implicava na existência de outro planeta para além deste em que vivemos. Mas o modernismo tratava de desenvolvimento, e ainda tentava liderar o mundo. Suas atitudes hipócritas nunca disseram explicitamente “eu não me importo, dê o fora”.


O que significou a assinatura do Acordo de Paris da ONU [de combate às mudanças climáticas] em 2015? 

Isso impactou uma hierarquia de poderes. Agora, todos que estão no poder têm o limite de 2°C [de aumento da temperatura média global] como um horizonte para a política. Isso é típico do que eu chamo de novo regime climático: você deve se desenvolver submetido a um poder que é também científico e que tem a aceitação da ideia de Gaia. O limite de 2°C vem do reconhecimento de que a Terra é um sistema do qual somos parte. Senão, não haveria razão para haver esse limite, por que não dizer 8°C ou 15°C? Isso não importaria.


Na edição brasileira de Diante de Gaia, o sr. diz que se preparava em 2013 para essa tempestade perfeita que hoje é vivida no Brasil. Quais perspectivas o sr. vê hoje para o Brasil? 

É claro que essa é a tempestade perfeita: quando há a mais forte virada na política, que é o novo regime climático, é também quando há a maior catástrofe na política. Ambos estão relacionados: se a política se tornou tão maluca é porque a crise é muito profunda e ela é sobre o clima. Sobre o horizonte para o Brasil, é muito importante para o resto do mundo que vocês encontrem respostas para essa crise.

É que —como posso dizer isso sem parecer desesperado?— se vocês administrarem uma solução, vocês salvam o resto do mundo. Porque em nenhum lugar há a mesma intensidade das duas tempestades se juntando, a ecológica e a política, como há no Brasil.

O Brasil é hoje como a Espanha era em 1936, durante a Guerra Civil: é onde tudo que vai ser importante nas próximas décadas está visível.


A preocupação internacional também é usada para alimentar uma narrativa nacionalista por aqui.  

A guerra cultural é parte disso, não é dissonância cognitiva. Não é coincidência que o governo brasileiro é tão inspirado por atitudes religiosas: se essa casa queimar, não importa, eles levam seus recursos para seu outro planeta, no céu, no paraíso.


A pandemia tem algum potencial de nos provocar essa reflexão sobre não termos outro planeta? 

É um ensaio, mas ele não nos prepara muito bem para as outras crises que estão vindo. Por outro lado, as pessoas ficaram com um pequeno pensamento de que as coisas podem ser diferentes. Então podemos dar a elas algumas ideias de como mudar as coisas.


O sr. propõe um terceiro pólo, o terrestre, como solução para as polarizações entre esquerda e direita, entre global e local. Como sua proposta difere da corrente política da terceira via?

Aqui, Marina Silva foi candidata defendendo que não estava “nem à esquerda e nem à direita de Lula, mas à frente”. Ela foi uma grande ministra e está certa, é mesmo “à frente”, mas não só. É muito diferente da terceira via, ideia britânica que tenta escapar das consequências de ser de esquerda. O que eu chamo de pólo terrestre é uma mudança de horizonte. Minha obsessão é definir o que é essa direção do terrestre.


Esse pólo pode ser representado por aquele mantra que sugere pensar globalmente e agir localmente?  Na intenção, sim; embora a noção do local competindo com o global seja uma tradição colonialista. O que a concepção das palavras diz é: não há forma de desenvolver o mundo com a ideia modernista dos anos 1970. Não há Terra para isso.


Uma última mensagem para os brasileiros? 

Tenho uma relação muito forte com o Brasil. Meu coração está com vocês nesta tempestade perfeita e espero que vocês saiam dela. Todos nós precisamos que vocês saiam dela.


[Ana Carolina Amaral, Folha de SP - 12/09/2020]


ENTREVISTA 2 [edt]

Você disse que se recusa a ver os eleitores do Trump como idiotas e ignorantes porque não se trata de um problema cognitivo. No livro, você diz que isso se deve a “uma ausência de práticas comuns”. Você também diz que os fatos científicos precisam de um mundo compartilhado para se sustentar. Assim, tanto aqueles que acreditam nas fake news quanto aqueles que os criticam habitam mundos alternativos. Como você imagina os caminhos para a reconstrução de um mundo comum, sobretudo em países como o Brasil, que sofrem de uma ausência histórica de sentimento de pertencimento e comunidade?”

Essa é uma questão mais de geopolítica do que de ciência cognitiva. Acho que as duas frases que você citou, sobre o mundo comum... Acho que é aí que antropólogos, sociólogos e cognitivistas devem trabalhar juntos. Vejamos o caso das ciências. É claro que, se há pessoas que acham que podem escapar do mundo terrestre e outras que vão ficar na Terra, a probabilidade de elas concordarem sobre fatos estabelecidos não existe, porque elas vão aplicar a todos os fatos sobre o planeta [ao qual “pertencem”) a frase dita com frequência na Inglaterra: “My country, right or wrong.” Ou “verdade ou mentira, não é possível que seja verdade; sou eu que decido”. É o que ouvimos nas manifestações, pelo que sei, dos adeptos do Bolsonaro agora. Não é porque eles têm problemas cognitivos, é porque estão em outro planeta não afetado pelo clima nem pela pandemia.

É claro que há algo de extremo no fato de o negacionismo ser aplicado à pandemia no Brasil ou nos EUA. Há algo de extremo na ideia de que o simples fato de usar uma máscara agora seja uma atitude política. Mas não porque as pessoas sejam loucas, é porque elas não estão mais no mesmo mundo; e vemos retroativamente que, se não temos um terreno comum, no sentido literal de estar sobre o mesmo solo, as distâncias que uma discussão... Uma discussão pode diminuir a distância em milímetros, mas as pessoas agora estão separadas por quilômetros. É simplesmente um problema, digamos, de distanciamento. A conversa, a discussão, a argumentação que ensinamos aos alunos de filosofia valem para 98% dos assuntos em geral, daquilo que é comumente aceito. Nesses casos, a discussão pode variar alguns milímetros. Mas, se as pessoas estão em outro mundo, é impossível.

Isso me leva à segunda citação que você fez - e o caso do Brasil é tão horrível quanto o dos EUA, mas vou usar o dos EUA porque talvez seja mais simples e eu o entendo melhor. A briga atual sobre a questão do racismo, como [ocorre com] a questão climática, vem de pessoas que vivem num país que não é deles, de certa forma. E é muito complicado associar o mundo em que vivemos e o mundo do qual vivemos no mesmo conjunto. É um problema geral, mas que considero muito forte nos EUA porque é um país colonizado, que eliminou os primeiros habitantes e extrai do resto do mundo riquezas para sustentar esse sistema que todos sabem que não tem futuro. Podemos transpor essa situação, com o nível de complexidade - como sempre, no Brasil - triplicado ou quadruplicado pela longa história de colonização. Você sabe disso melhor do que eu, e os antropólogos que você conhece também, mas acho que é impossível desenhar uma fronteira que corresponderia a um Brasil compartilhado por todos os brasileiros.

A ideia de nacionalidade, que por muito tempo serviu mais ou menos [a essa delimitação], funcionava com base na ideia de desenvolvimento. Eu acabei de escrever um artigo com Dipesh Chakrabarty que é interessante nesse sentido [hrtp://www.bruno-latour.fr/sites/default/files/170-PLANETARY-PROPORTIONS.pdf], porque Dipesh diz que a ideia de nação funciona relativamente bem se ainda possuímos um horizonte de modernização comum. Mas o que acontece quando a ideia de modernização é pervertida, de certa forma, ou abandonada, quando alguém diz “vamos fugir, porque temos como nos proteger, e vocês vão ser deixados para trás”? Nesse caso, a ideia de nação não consegue mais delimitar, definir algo como... não necessariamente um mundo comum, mas ao menos, como dizíamos antes, um “concordamos em discordar”, um “estamos suficientemente de acordo para discordar”. Essa situação não existe mais. Estamos em guerra. E essa guerra geopolítica atravessa os países dos quais falamos na primeira pergunta. Então, não é um problema cognitivo. É um problema de ocupação do território.

E também de práticas comuns.

Sim, mas é preciso pensar “práticas” num sentido muito material. Aliás, dá para ver isso na geografia das desigualdades sociais: não são as mesmas pessoas num [mesmo] lugar, enfim... O Brasil, mais uma vez, é um tipo de exageração, como sempre, ou de amplificação de coisas que são visíveis em outros lugares, mas talvez de forma mais dissimulada.


Ainda a respeito do Brasil, você disse, em Onde aterrar?, que seria injusto com o fascismo compará-lo ao trumpismo. Por que o fascismo seria uma noção inapropriada? Este conceito não ajudaria a entender o que está acontecendo no Brasil, se levarmos em conta os ataques aos direitos sociais, reprodutivos e indígenas, além da destruição ambiental orquestrada por Bolsonaro?

Cabe aos brasileiros, como você, e aos políticos do país decidir se o adjetivo pode ser usado. Eu desconfio da transferência [de um conceito] dos anos 1530 para agora, porque é sempre problemático usar uma etiqueta que é de uma época muito diferente. O fascismo nos anos 1930 estava associado à ideia de desenvolvimento de nação e, sobretudo, de uma comunidade que devia apoiar ou atrair o máximo possível de pessoas (com exceção, claro, de certas pessoas que o ato de formar [o grupo já excluía]). Mas como usar o termo “fascismo” quando não há a noção de desenvolvimento técnico, que era extremamente importante para o fascismo; quando não há a noção de desenvolvimento econômico nem de uma nação mais ou menos comum e universal para O grupo [principal]?

Isso me parece difícil, porque o escapismo, o fato de [alguém querer] se esconder num bunker, de dizer, como seu presidente... Desculpe por citá-lo, mas... Quando disseram que havia muitas mortes de coronavírus, ele respondeu: “E daí?” Isso não são características do fascismo. São características de exclusão e de abandono da situação. Essa é a grande diferença entre Trump e Bolsonaro e os fascistas.

Talvez haja a mesma violência; neste caso, a etiqueta pode ser aplicada. Mas não é de jeito nenhum uma ideia de construir uma nova sociedade. É uma indiferença às regras. Não é a mesma situação. “sejam quais forem os limites científicos, regulamentares, multinacionais, jurídicos etc., eu não estou nem aí.” Já o discurso do fascismo - hoje isso é paradoxal, mas não podemos nos confundir de época - mantinha a ideia de uma legalidade alternativa. [Os fascistas] não pensavam: “vamos abandonar as regras, vou me basear no meu ego e não ligar para acordo nenhum.”

Claro que, na luta política, todos os adjetivos são bons, e talvez a acusação de fascismo seja muito útil numa reunião pública ou num artigo. Mas, se falarmos analiticamente desse problema de aterrissagem, de encontrar uma geopolítica adaptada à Terra, prefiro não usar esse termo. Mas é você quem deve julgar isso.


Talvez em algumas situações [faça sentido] usá-lo, mas eu concordo. Acho que o nome não dá conta da complexidade da situação. Outra pergunta que eu gostaria de fazer é que, no livro e no seu artigo sobre a pandemia, você sugere um exercício de descrição para decidir o que queremos manter e o que devemos interromper para retomar a vida após a crise - e também, claro, diante da mutação climática. Você pode falar da importância desse esforço de descrição?

É um problema que talvez esteja muito ligado à situação europeia, na qual a tensão é grande, mas, ao mesmo tempo, não tem o extremo de violência que vocês têm no Brasil. Todo mundo acha que temos que mudar de sistema, pensar na questão ecológica de outra maneira, mas, como o preço a pagar por essas mudanças não é pago... As pessoas querem — e vemos agora, na França, nos jornais, listas de coisas que elas querem mudar: menos carros, menos viagens, aviões que voam com produtos mágicos e que não consomem petróleo, etc. Mas o preço a ser pago para podermos realizar essas mudanças nunca é discutido. Já na tradição anterior, na tradição socialista, no geral, sabíamos os sacrifícios e as brigas diretas correspondentes a esses interesses e desejos.

Existe um grande problema, que talvez seja próprio da Europa. Há [uma grande onda] ecológica, todo mundo se tornou “verde”. Hoje é a ideologia dominante, mas, em termos de limites, de decisões, isso ainda é muito frouxo. Então, meu argumento é que, para que a questão ecológica se torne séria para as pessoas - a questão é séria em termos de ameaça, mas não necessariamente para as pessoas, como era ou é a questão social -, é preciso passar por uma etapa de descrição, porque a mesma pessoa que quer parar os aviões e o turismo em massa sonha em ir ao Brasil ver a tia e o primo. A mesma coisa para a comida, o transporte, os prédios etc. Enquanto essas contradições não tiverem sido visualizadas, absorvidas e personalizadas, a ecologização da política vai permanecer muito superficial, uma boa intenção. Então eu quis aproveitar essa desaceleração provocada pela crise da pandemia para dizer: como temos um pouco mais de tempo, estamos parados e as normas “trator! da economia estão suspensas - porque não sabíamos disso, que podíamos suspendê-las -, vamos aproveitar para estimular essa descrição.

Mas a questão não é só simplesmente dizer o que vamos mudar ou não, mas o que vamos fazer com as pessoas, os investimentos, as empresas quando dizemos “queremos encerrar tais atividades”. É, mas e as pessoas? Isso nos obriga a “re-descrever”. É isso que me interessa. A primeira descrição costuma ser vaga, mas a “re-descrição” é muito importante e interessante, pois com ela se começa a criar uma paisagem política adaptada à questão ecológica - ao menos na Europa, onde, repito, a situação não está tão catastrófica quanto em outros países, como o seu.


Bom, uma outra pergunta que gostaria de fazer: apesar de a política ser um tema constante no seu trabalho, você adotou no livro Onde aterrar? um estilo diferente. Você até usou referências mais ligadas a uma posição política de esquerda. O que motivou essa mudança de postura? Você tinha a intenção de atingir um público específico?

Sim, eu queria reconectar, digamos - talvez estimulado por meus amigos brasileiros, que reclamavam da minha indiferença burguesa à questão... Eu queria conectar [as coisas], porque acho que, no fundo, seria isso que daria seriedade à questão política. Também fui muito influenciado pela encíclica do Papa Francisco, porque esse elo entre pobreza e ecologia foi feito pelos partidos ecológicos e pela literatura que mencionei, mas não era trabalhado da maneira potente como foi na encíclica do Papa Francisco. Tudo isso chamou minha atenção para a continuidade entre o longo trabalho que foi necessário para que a questão social se tornasse central na política, ou seja, a história do socialismo, e a questão ecológica atual.

Como também aprendi com um colega chamado Pierre Charbonnier, que acabou de escrever um livro importante, Abondance et liberté, sobre esse mesmo tema, eu tinha simplificado um pouco a relação entre os dois e, para reestabelecer a continuidade entre eles, foi preciso mudar meu estilo. Então, você tem razão. O estilo de Onde aterrar? é muito diferente e deve muito ao terror que a eleição de Trump suscitou em muitos - é preciso reconhecer isso - e, talvez ainda mais importante para nós, europeus, o Brexit. Esses dois acontecimentos foram concomitantes. Temos os dois países que inventaram a globalização e que, num mesmo momento, por causa do mesmo “ceticismo” em relação ao clima, tentam fugir para outro planeta. Aconteceu algo verdadeiramente impressionante em 2017. A chegada, em 2016, na verdade, do Brexit e depois de Trump... Há algo de assustador nisso. E depois outros acontecimentos, como o que o Brasil vive, só fizeram confirmar essa situação de terror. Então é isso. Estou com medo, na verdade.


Você mencionou um tema que é muito caro a nós, brasileiros, porque, como você deve saber, aqui temos... Bom, claro que o discurso de que precisamos para enfrentar a extrema direita que se torna cada vez mais forte no Brasil... Claro que precisamos de um projeto de esquerda, reinventar um projeto de esquerda num sentido mais amplo. Mas, no Brasil, a esquerda tem uma tradição de “desenvolvimento nacional”, que chamamos de '“desenvolvimentista”, muito forte. E isso foi, de certa forma, o lado ruim do governo de esquerda que tivemos. Muitas coisas foram boas, mas o grande defeito dele foi justamente levar adiante um projeto desenvolvimentista muito forte, uma cultura quase incontornável da esquerda daqui...

Esse é exatamente o objetivo de Onde Aterrar?, ou seja, convencer a esquerda que, na França, era desenvolvimentista - ainda que ela hoje quase não exista mais. Mesmo François Hollande... não, temos que voltar a Mitterrand, ou até antes. Como a esquerda desapareceu na Europa, é mais fácil dizer que é preciso abandonar o desenvolvimentismo. Todos os partidos de esquerda são, em toda a Europa, partidos verdes, de certa forma. Eles se misturaram. Eles não acreditam muito nisso, mas são obrigados a se envolver. A situação é muito diferente da de vocês. Mas, seja como for, seja uma esquerda um pouco verde, muito vermelha, rosa ou misturada, isso não define o novo horizonte que substitui o desenvolvimento. Esse é o problema que a esquerda tem no mundo todo. Isso é verdade também. É como você disse: não podemos continuar a definir a esquerda pelo desenvolvimento, mas também não podemos defini-la pelo simples abandono do desenvolvimento, que é marcado na Europa pela noção de decrescimento.

Então a virada que eu incentivo no livro, e que é tema de uma exposição em Karlsruhe sobre a noção de "zona crítica"... [https://critical-zones.zkm.de/f!/] para dizer de uma forma um pouco exagerada, é uma virada cosmológica. Ou seja, não é o horizonte do desenvolvimento, mas um horizonte terrestre. Mas é preciso ter um horizonte. Sem isso, nunca vamos conseguir captar a energia que foi captada pelo socialismo. Acho que o problema que você mencionou é um pouco mais fácil de resolver na Europa porque, mais uma vez, as catástrofes são um pouco menos violentas do que no seu país; mas é um problema geral. E, como Dipesh demonstra no artigo que escrevemos, é um problema enorme na China e na Índia porque não há alternativa. Disseram a eles “vocês vão se desenvolver” e eles são 3 bilhões de pessoas, querem se desenvolver e têm razão.

Então a contradição geopolítica não é a mesma que no Brasil porque, no seu país, o problema é que o governo, como nos EUA, fugiu e criou uma separação do resto da população. Mas os governos da China e da Índia, que ainda não se separaram da população de seus países, estão numa situação de desenvolvimento indefinido que também é catastrófica. Então a situação geopolítica é complexa em todo o mundo.


Poderíamos dizer, de certa forma, que o negacionismo, ou seja, o ataque que o governo faz sem parar aos intermediários, a todos os enunciadores da verdade - sejam eles cientistas, jornalistas, especialistas, professores, universitários... Estamos sempre sendo atacados, porque é como se houvesse um movimento anti-elite intelectual. Então, o negacionismo também é uma forma de governo. Na verdade, o governo tem um apoio popular considerável; não é um governo antipopular. E ele é popular justamente nesse modo de reunir essas forças que estão ressentidas, que se reúnem em torno de um certo ressentimento contra todos que possuem, digamos, uma relação privilegiada com a verdade. Então é como se o negacionismo fosse usado como um modo de governo, que cria uma relação direta entre Bolsonaro, todos que ele representa e se articulam em torno dele, e parte considerável do povo, das pessoas comuns.

Entendo o que você quer dizer, mas talvez eu dê menos importância a isso. Como já disse, o negacionismo chama a atenção para uma forma de imbecilidade cognitiva, mas isso é uma imbecilidade territorial. Acho que essa é a diferença. Os dois lados não vivem no mesmo território, não definem do mesmo modo o pertencimento ao solo, à Terra etc. O que Trump fazia muito bem - e que começa a não fazer tão bem -, e o que Bolsonaro faz muito bem (mas talvez não por muito tempo) é [operar] essa conexão que você mencionou: o discurso disruptivo anti-elite desses dois entra em acordo provisório com o sentimento anti-elite popular.

Mas vemos muito bem que se trata de uma concordância impossível, porque entre o capitalismo extremo de Trump e a manutenção do branco pobre do Meio Oeste americano, a conexão é totalmente improvável. E só se sustenta pelo caráter disruptivo. Não é um negacionismo no sentido cognitivo, é um negacionismo de ataque. Ele funciona enquanto a capacidade disruptiva dos dois presidentes, se os compararmos - eles se gostam muito, então podemos compará-los -, continuar. Mas não vejo isso como uma figura definitiva. Ela é extraordinariamente perturbadora, cria um sofrimento imenso, mas não é uma posição política estável. Se compararmos, por exemplo, a energia extraordinária empregada pelos que você chamou de desenvolvimentistas durante quase 130 anos, isso não tem nada a ver. Não é a mesma coisa. Então, se compararmos com a energia gerada pelos socialistas, isso não tem nada a ver. Então não é isso. Acho que o episódio que estamos vivendo é muito doloroso, mas ele não capta uma situação tão profunda quanto os outros.

Isso porque as esquerdas, no sentido amplo, e os partidos ecológicos (também no sentido amplo) não conseguiram definir o horizonte onde suas ações se situavam. Os negacionistas ocuparam um vazio. Não ocuparam a COVID, mas o vazio que foi criado... Pelo menos, na Europa isso é muito claro: o desaparecimento da esquerda abriu espaço para invenções identitárias de uma bizarrice extraordinária e que não têm uma raiz popular, são formas muito pobres. Então, eu tenderia a atribuir isso mais à fraqueza da esquerda e dos partidos ecológicos. Quando deixarem de insistir no argumento cognitivo, vão perceber que as pessoas continuam a pensar com a cabeça. Se elas precisarem de um médico, elas sabem o que é um médico e, se precisarem calcular os impostos, vão calcular. Elas não são perturbadas cognitivamente.

Mas a oferta política atual faz com que a disrupção - não sei se usamos essa palavra em francês -, a disrupção mobilizada por esses dois presidentes parece uma política, que produz um acordo muito vago com o que foi a intensidade popular de antes. É isso que chamamos de populismo: a associação entre uma reivindicação clássica e o fato de que a elite destrói suas próprias condições [de vida] porque quer ir embora, viver em outro planeta. É trágico. Mas não devemos pensar demais sobre isso.


[Alyne Costa e Tatiana Roque - 26/07/2020]