EMANUELE COCCIA

ENTREVISTA*


Em seu último ensaio, Metamorfose, você fala que todos os seres vivos vêm da mesma vida, que se transmuta incessantemente. Não é isso o que todos nós, infelizmente, experimentamos com a epidemia?

Emanuele Coccia - As duas últimas páginas de Metamorfose, escritas bem antes da atual pandemia, estão dedicadas aos vírus. Esboço nelas a ideia de que o vírus é a forma pela qual o futuro existe no presente. O vírus, de fato, é uma pura força de metamorfose, e circula de vida em vida sem se restringir às fronteiras dos corpos. Livre, anárquico, quase que imaterial, não pertencendo a indivíduo nenhum, possui capacidade para transformar todos os seres vivos, permitindo-lhes atingir sua forma singular. Pense que uma parte do nosso DNA, provavelmente cerca de 8%, tem origem viral!

Os vírus são uma força de novidade, de modificação, de transformação - e possuem um potencial de invenção que tem tido um papel essencial na evolução. Eles são uma prova de que não somos senão identidades genéticas de uma bricolagem multiespecífica. Gilles Deleuze escreveu que “fazemos rizoma com nossos vírus, ou antes, nossos vírus nos fazem fazer rizoma com outros animais”. Nessa perspectiva, o futuro é a doença da identidade, o câncer do presente - que obriga a todos os seres vivos a se metamorfosearem. Eles precisam adoecer, contaminar- se e, possivelmente, morrer para que a vida continue seu curso e dê à luz o futuro.


Essa forma de ver as coisas pode parecer mais inquietante que tranquilizadora..

O poder transformador dos vírus, obviamente, dá um pouco de medo, pois a COVID-19 está mudando profundamente o nosso mundo. A crise epidemiológica, no fim, será superada, mas o aparecimento deste vírus já mudou irremediavelmente os nossos estilos de vida, nossas realidades sociais, nossos equilíbrios geopolíticos. Grande parte da angústia que experimentamos hoje é resultante da nossa compreensão de que o menor ser vivo é capaz de paralisar a civilização humana melhor equipada tecnicamente. Esse poder transformador de um ser invisível, acredito, produz um questionamento do narcisismo das nossas sociedades.


Ou seja..?

Estou pensando não somente no narcisismo que torna o ser humano mestre da natureza, mas também naquele que nos leva a conceder ao ser humano um poder destrutivo incrível e exclusivo sobre os equilíbrios naturais. Continuamos a nos enxergar como especiais, diferentes, excepcionais, inclusive na contemplação do dano que inífligimos a outros seres vivos. Contudo, esse poder de destruição, do mesmo modo que a força da geração, está distribuído equitativamente entre todos os seres vivos. O ser humano não é o ser que mais altera a natureza. Qualquer bactéria, qualquer vírus, qualquer inseto pode produzir um grande impacto no mundo.


A atual pandemia deveria também nos induzir a mudar de opinião?

A ecologia contemporânea continua a se nutrir de um imaginário em que a Terra aparece como a casa da vida. Trata-se de uma ideia implícita nas próprias palavras ecologia e ecossistema: oikos, em grego, designa a morada, a esfera doméstica bem organizada. Na realidade, a natureza não é o reino do equilíbrio perpétuo, onde todos estariam no seu lugar. É um espaço para a invenção permanente de novos seres vivos que alteram totalmente o equilíbrio. Todos os seres migram, todos os seres ocupam a casa de outros. A vida, basicamente, é só isso.

Mais que um medo do vírus, o clima atual revela um medo da morte?

Sim, definitivamente. É natural ter medo da morte e lutar contra ela tanto quanto nos for possível. É normal adotar medidas para proteger a comunidade e, principalmente, seus membros mais frágeis. Para além da crise que estamos atravessando, contudo, nossas sociedades tendem a recalcar a morte e pensar na vida individual em termos absolutos. Porém a vida que vivemos não começa com o nosso nascimento: é a vida da nossa mãe que se estendeu até nós, e que continuará a viver em nossos filhos. Somos a mesma carne, o mesmo sopro, os mesmos átomos da nossa mãe que nos acolheu durante nove meses. A vida vai de um corpo para outro, de uma espécie para outra, de um reino para outro através do nascimento, da nutrição, mas também e, sobretudo, da morte. Também é em virtude do que compartilhamos (humanos, pangolins, plantas, fungos, vírus, etc.), é pelo próprio sopro da vida que ficamos expostos à morte - é apenas porque a vida é em mim que ela pode se tornar a vida de uma outra pessoa, e que posso perdê-la.


A morte não é o fim da vida?

Não é. A morte é a metamorfose da própria vida que circula e se prepara permanentemente para tomar outras formas. Ao morrermos, passaremos essa vida para outros seres. A crença de que a vida que nos anima acaba com a morte do nosso corpo é uma consequência da fetichização do nosso ser - a ideia de que cada um de nós tem uma vida que nos pertence, nativa. Precisamos nos libertar dessa concepção.


Parece uma perspectiva libertadora, mas, de entrada, também preocupante, não é?

E a própria vida que é inquietante e ambígua! Qualquer vida é um potencial para a criação, para a invenção. Qualquer vida é capaz de impor uma nova ordem, uma nova perspectiva, uma nova forma de existir. Mas essa abertura para o novo sempre envolve uma parte sombria e destrutiva. Pense apenas no elementar ato de comer: a nossa vida está literalmente construída sobre os cadáveres dos vivos. O nosso corpo é o cemitério de um número infinito de outros seres. E nós mesmos seremos consumidos por outros vivos. Com o vírus, nós percebemos que esse poder de novidade incrível não está ligado a uma competência anatômica específica, por exemplo, o tamanho ou a capacidade cerebral. Enquanto houver vida, pouco importa onde ela se situa na árvore da evolução, estaremos em presença de um poder colossal, capaz de mudar a face do planeta.


Deveríamos então abandonar a ideia tradicional de uma hierarquia de espécies?

Deveríamos. Assumimos espontaneamente que o animal é superior à planta, que a planta é superior à bactéria, etc. Porém as formas de vida menores não são as mais básicas, nem as mais primitivas. Nenhum ser vivo conservou a forma que tinha há milhões de anos. Cada ser vivo tem por trás de si uma história milenar envolvendo outros seres. A evolução dos vírus, por exemplo, está ligada à de outros seres vivos, pois eles «se alimentam» de pedaços de DNA.


O que faz a especificidade da existência dos vírus?

Em primeiro lugar, há uma discussão sobre eles que, acredito, nunca será resolvida: os vírus são seres vivos? Trata-se, nessa discussão teórica, acredito, de uma pergunta mal formulada. Sempre existe o não-vivo no vivo, de fato. Somos feitos do mesmo material que a Terra. Possuímos uma estrutura molecular que contém algo de mineral. Por isso um livro muito bonito de Thomas Heams propõe falar e «infravidas» ao invés de não-vidas. Em resumo, os vírus praticamente se reduzem a DNA ou RNA, material genético. Não têm uma estrutura celular - núcleo, mitocôndrias, etc. Isso é surpreendente, porque a célula costuma ser tomada como a unidade básica comum a todos os seres vivos. Inclusive as bactérias têm uma estrutura celular, embora muito específica. Em qualquer caso, os vírus precisam de outras estruturas biológicas maiores para se sustentar e reproduzir-se: eles «pirateiam» as células de outros organismos e transmitem a eles novas instruções genéticas para se multiplicar.


O que pensar da metáfora do vírus informático?

Penso que deveríamos reverter isso: toda informação é um vírus. Toda informação vem de outra parte. Nesse mesmo sentido, podemos falar que a linguagem e o pensamento estão estruturados como genes: todo pensamento pode ser decomposto em elementos mais ou menos complexos, os quais, como os genes, podem ser transmitidos. Isso possibilita que as mentes daqueles que recebem a informação pensem o mesmo ou emitam o mesmo gesto em um novo contexto.


Devemos admitir que os vírus fazem parte da multidão de seres que habitam em nós?

Todos nós somos corpos que transportamos uma inacreditável quantidade de bactérias, vírus, fungos e não-humanos. Sãs 100 bilhões de bactérias de 500 a 1.000 espécies que se instalam em nós. Quer dizer, 10 vezes mais do que a quantidade de células que compõem os nossos corpos. Em resumo, não somos um ser vivo só, mas uma população, uma espécie de zoológico itinerante, uma casa de feras. Ainda mais profundamente, múltiplos não-humanos, a começar pelos vírus, ajudaram a dar forma ao organismo humano, a sua forma, a sua estrutura. As mitocôndrias das nossas células, que produzem energia, resultam da incorporação de bactérias. Essa evidencia científica deveria nos levar a questionar a substancialização do indivíduo, a ideia de que ele é uma entidade em si, fechada ao mundo e à outridade. Mas também teríamos que eliminar a substancialização das espécies.


O que isso quer dizer?

Apesar da ciência, temos cavado um abismo entre as diferentes espécies. Nunca integramos completamente a intuição de Darwin, que não era tanto a de que “o homem descende dos primatas”, mas antes que “nenhuma espécie é pura, toda espécie é uma mistura estranha, uma quimera, uma bricolagem, um mosaico de identidades genéticas de outras espécies que a antecederam”. Todos somos feitos um do outro, levamos as marcas de uma multidão de formas pelas quais a vida passou antes de produzir a forma humana. Observe o corpo humano: a maioria de suas características morfológicas, como o nariz ou os olhos, não são especificamente humanos. As nossas vidas são pouco humanas. Nós, os vivos, somos a mesma vida de outros locais apenas modificada. Uma vida que começa muito antes de nós. Qualquer espécie é como que a borboleta de outra e a lagarta pronta para se transformar em uma infinidade de outras. Do ponto de vista químico, a prova final disso é que todos compartilhamos o mesmo maquinário genético - DNA e RNA.


Para finalizar, você indicaria uma leitura para esses tempos de clausura?

Há um texto muito belo de Aldo Leopold, Odyssey [1942], no qual ele conta a vida do ponto de vista de um átomo que atravessa várias formas de vida. Essa leitura nos permite perceber que tudo o que nos circunda participa da mesma respiração e da mesma vida.


[*] O VÍRUS É UMA FORÇA ANÁRQUICA DE METAMORFOSE [26/03/2020]

https://lavoragine.net/virus-fuerza-metamorfosis-emanuele-coccia/

Emanuele Coccia: Metamorfoses - Selvagem / 2019