No dia 2 de março, a bruxa neopagã, ecoativista e filosofa Starhawk, em uma sessão ao vivo do seu curso online Magical Activism, exortou os participantes a “ouvirem o vírus.” Ela perguntava o que poderíamos saber sobre o desejo do coronavírus e como dedicar-lhe oferendas a fim de diminuir sua voracidade. Nessa mesma sessão contou que, anos antes, participara de um ritual do grupo Reclaiming com o objetivo de estabelecer comunicação com o que chamou de Grande Mãe Bactéria. Por meio de “experimentos científicos e transe coletivo”, declarou ter entrado em contato com essa entidade, que lhe teria enviado a seguinte mensagem: “posso acabar com todos vocês; mas, por ora, não quero.”
Em “Nisun: A vingança do povo morcego e o que ele pode nos ensinar sobre o novo coronavírus", a antropóloga Els Lagrou relata uma conversa com o “líder de canto do cipó Ibã Huni Kuin” na qual este lhe dizia estar se recolhendo, junto de seu povo, na floresta, pois a pandemia se tratava de nisun, vingança. Vingança animal, ela explica, uma vez que, segundo a cosmologia Huni Kuin, “toda predação desencadeia uma contra-predação”. Nesse mundo, a maior parte das doenças está ligada ao consumo de animais. No nosso, embora muitas vezes encubramos o fato, as doenças também costumam estar ligadas a um (mau) convívio com eles. De acordo com a OMS, “60% das doenças infecciosas emergentes no mundo são zoonoses. Mais de 30 novos patógenos humanos foram descobertos nas últimas 3 décadas, 75% dos quais originários de animais”.
Em post no Facebook do dia 15 de abril, Aikyry Waiápi anunciou que “a floresta, junto com seus donos, não vão pegar coronavírus. Porque eles já têm a cura da Covid-19. [..] Os donos seduziram o pensamento de alguns cientistas [...] Os donos de outros seres querem que a humanidade mesma fabrique as doenças para se acabarem eles mesmos. Um dia a humanidade vão ser extinta por vários donos. Porque a humanidade estão destruindo todas as coisas cada vez mais aqui no planeta terra. Por este motivo vários donos estão fazendo sua vingança cada vez mais.” No Plano de Gestão Socioambiental Wajápi de 2017, informa-se que para esse povo não há fronteira entre sociedade, cultura e natureza e todos os seres - jamais recursos, mas povos -— possuem um “dono”:
Por exemplo: a árvore que chamamos de kumaka (sumaúma) é a casa do seu dono, onde ele mora junto com sua família. Por isso o dono da sumaúma cuida da árvore; se ele não cuidar, a sumaúma vai cair. Se nós derrubarmos uma sumaúma, seu dono vai ficar muito bravo porque nós destruímos a sua casa, e vai agredir a pessoa que a derrubou.
Conclui-se assim que
Os não-índios acham que os seres da “natureza” não têm cultura, nem i'ã (princípio vital, alma, memória, experiência), porque quem tem essas coisas são apenas os homens. Mas, pelo nosso conhecimento, todos os seres que os não-índios consideram como natureza também têm cultura, todos têm donos e têm i'ã. Por isso, nós temos que nos relacionar com eles de um jeito complexo, fazendo negociações e tomando vários cuidados.
Quem cura as enfermidades humanas, por meio de comunicação entre pajés, são os donos.
A antropóloga Elizabeth Povinelli vê no Antropoceno um desmoronamento da diferença entre Vida e Não-Vida, que ela explora a fundo em seu <Geontologies>. Partindo do pressuposto de que o conceito do Antropoceno é o resultado tanto da análise da formação dos campos de carvão e dos fósseis neles contidos assim como da exploração dos combustíveis que permitiram o desenvolvimento de disciplinas como geologia e biologia, que separaram Vida e Não-Vida, a autora se pergunta “que diferença, da perspectiva do ciclo planetário do carbono, faz a diferença entre Vida e Não-Vida?” O planeta começou não apenas sem a humanidade, mas também sem vida - e não sabemos como haverá de terminar - mas talvez haja uma porosidade muito maior entre Vida e Não-Vida do que estamos acostumadas a pensar. Aliando-se a seus amigos e colegas indígenas do Território do Norte na Austrália, que mantém uma relação política com sua country, capaz de sentir mesmo o cheiro de seu suor, Povinelli propõe - ao modo foucaultiano das figuras da sexualidade que tanto revelam a maneira de operação quanto exprimem saídas do biopoder - três figuras que emergem do entrelaçamento existencial e material que a decadente governança geontológica no Antropoceno nos apresenta: o Deserto, o Animista e o Vírus.
Se a primeira nos remeteria a Mad Max, aos campos de petróleo e ao imaginário da total destituição de vida do que um dia, no entanto, foi animado - o que é atestado pela presença dos fósseis; - e a segunda nos enviaria ainda talvez a uma estratégia que postularia uma superioridade da Vida sobre a Não-Vida - mas quem sabe, também, ao fim desse dualismo -, por meio de apropriações do pensamento de povos extra-modernos e da proliferação de filosofias vitalistas, a terceira nos atira em um paradoxo. No coração do Vírus habita um terrorista: nele, a diferença entre Vida e Não-Vida não faz diferença - não porque tudo que é vivo terminaria desertificado ou porque tudo seria já vivo - mas à medida que se trata de uma existência nem viva nem não-viva:
O vírus também é Ebola [e coronavírus] e o lixão, a infecção bacteriana cozida dentro de enormes fazendas de aves e de salmões e o poder nuclear; a pessoa que se parece “conosco” enquanto planta uma bomba. Talvez, de modo mais espetacular, o Vírus é a figura popular do zumbi - Vida tornada Não-Vida e transformada em um novo tipo de guerra de espécies - os putrescentes mortos-vivos agressivos contra o último reduto da vida.
“Como a linguagem, as moléculas nuas de DNA ou programas de computador, os vírus passam por mutações e evoluem: mas, por si mesmos, são no máximo zumbis químicos”, escreviam a bióloga Lynn Margulis e seu filho, o ensaísta Dorion Sagan em <What is Life?>, utilizando-se da mesma imagem de Povinelli 21 anos antes. No epílogo do livro, ambos afirmavam peremptoriamente que
para funcionar, a biosfera requer a diversidade microbiana [..] Os humanos não são especiais e independentes, mas parte de um continuum de vida que circunda e abarca o globo. O Homo sapiens tende a dissipar calor e a acelerar a organização. Como todas as outras formas de vida, nossa estirpe não pode continuar a se expandir sem limites. Nem podemos continuar a destruir outros seres de quem dependemos em última instância. Precisamos realmente começar a ouvir o resto da vida. Assim como uma melodia na ópera viva, somos repetitivos e persistentes. Podemos nos achar originais, mas não estamos sós com esses talentos. Quer o admitamos ou não, somos apenas um único tema em uma forma-de-vida orquestrada.
Voltamos, aqui, depois de um percurso que começou com uma bruxa e chegou a uma cientista, à questão da audição. “É preciso ouvir o vírus.” Que história ele nos conta? Assim como a Mãe Bactéria, pode certamente acabar com todos nós - com o mundo tal como o conhecemos hoje. Que tema ele canta? Podemos começar por voltar essa pergunta a nós mesmos: que temas vimos cantando? Enquanto espécie, é difícil saber. A artista e pesquisadora Cecilia Cavalieri compôs, à ocasião da posse de Jair Bolsonaro, uma peça chamada “Música Infernal”, na qual transformou a foto do momento em que o presidente eleito, de mãos dadas com seus comparsas, fez uma espécie de juramento macabro sobre a Bíblia, em uma partitura musical cantada por três aves brasileiras extintas, o Gritador-do-Nordeste (Cichlocolaptes mazarbarnetti), o Limpa-Folha-do-Nordeste (Philydor novaesi) e o Caburé-de-Pernambuco (Glaucidium mooreorum). O resultado é espantoso. Que música é essa, cantada por bichos que já não são mais (por ação antropogênica - sobretudo a destruição de seu habitat) e que no entanto encantam em som, com o auxílio de um programa de computador, uma das imagens-núcleo da qual emanariam alguns dos momentos mais nefastos dos últimos anos? Que tema é esse, cantado por mortos evocados em uma séance maquínica para assombrar os mortos-vivos que hoje governam o país? Que (cosmo)política é essa que reúne bichos, fantasmas e zumbis, entrelaçados em mais de uma pandemia com a qual precisamos, nós, os ainda-vivos, nos haver?
Em uma outra de suas sessões, Starhawk abriu um círculo mágico para pedir ajuda aos elementos, além de diversas deidades e entidades, no direcionamento a possíveis respostas à seguinte pergunta: “Com que forças posso contar e que ações devo tomar no contexto da dupla pandemia, biológica e política?”. Quando vejo as carreatas da morte pelas ruas do Brasil (movidas a combustíveis fósseis) ou as fotos de protestos em que norte-americanos erguem cartazes nos quais exigem o direito de cortar os cabelos - enquanto tentam ocultar, todos, seu desejo nem tão secreto de ver perecer o povo pobre, negro, indígena, LGBT, além de animais, florestas, rios, em suma, as minorias que resistem - não posso deixar de pensar que, de fato, há mais de uma pandemia. Mas, ao mesmo tempo, seria ingenuidade, ou melhor dizendo, negacionismo, no sentido forte desenvolvido pela filosofa Deborah Danowski, acreditar que essas pandemias não estão entrelaçadas. Se vírus se assemelham à figura do zumbi, não me parece que estamos falando do coronavírus, mas desse outro que inflama multidões com ódio e faz avançar o fascismo. Ou que, por outra, se experimenta no próprio modo de produção capitalista, com os seus negacionismos de ponta a ponta. <NEGACIONISMOS - Deborah DANOWSKI>
Não pensemos, entretanto, que esse processo zumbificador não tem nada a ver com o SARS-CoV-2. Como já se disse, trata-se de um vírus “natural”, isto é, que passou por um processo de “seleção natural” antes da “transferência zoonótica”. Os candidatos mais prováveis a hospedeiros, segundo pesquisas recentes, seriam espécies de pangolim e de morcegos - imagens de sopa desses animais correram o mundo, despertando odiosas atitudes racistas no chamado ocidente. Morcegos, que pertencem à ordem Chiroptera (“mãos de asa”), são os únicos mamíferos capazes de realmente sustentar o voo e compreendem quase 1400 espécies, habitando todos os continentes, à exceção da Antártida. Estudos dão conta de que eles têm co-evoluído com diversos tipos de coronavírus há milhões de anos, uma “profunda história evolutiva.” Tigga Kingston, bióloga, fundadora e diretora da Southeast Asian Bat Conservation Unit, além de co-presidente do Grupo especialista em morcegos da IUCN, com foco em morcegos do velho mundo, em um artigo para o Southeat Asia Globe! lança uma pergunta intrigante: “Morcegos não transmitem Covid-19, só é possível pegar de outras pessoas. Então por que se fala tanto em morcegos?” Ela explica que em 2013 foi isolado o vírus RatG2013, relacionado ao SARS-CoV-2, na espécie Rhinolophus affinis, o que levou à demonização desses animais. Mas então, podemos nos perguntar, o que houve?
Em primeiro lugar, Kingston considera que o transbordamento de um vírus que não faz mal, via de regra, a seus hospedeiros extra-humanos, pode ter se dado, no caso do Homo sapiens, através do pangolim (Manis spp). Mas, e isso é o que ela considera mais importante, são
as atividades humanas que têm tornado essas condições mais frequentemente possíveis. A perturbação de habitats e a destruição causam estresse nos animais, o que os torna vulneráveis a vírus e mais suscetíveis a produzir números altos de vírus. Os humanos estão invadindo o habitat da vida selvagem ou fazendo comércio ali, abatendo e consumindo a vida selvagem, todas essas coisas que aumentam a exposição humana. Humanos trazem consigo outras espécies e terras agrícolas, aumentando as oportunidades de transmissão através de espécies, o que é frequentemente um passo chave na direção da infecção humana.”
Kingston ainda fala do problema que sofrem as cavernas onde esses animais se empoleiram: o impacto do turismo, a exploração de guano - as fezes de morcego, fertilizante rico em fosfato, nitrogênio, amônia e sais alcalinos - e outros. Se seguirmos sua pista, entretanto, não se trataria simplesmente da vingança de uma espécie ou uma ordem contra a humanidade, mas, a contar pelo número de espécies necessárias forçadas a conviver em condições precárias, de um complô contra a humanidade. Contra a humanidade?
Minha hipótese é que, se é que se trata de vingança, essa dos povos animais (e de seus donos, ancestrais, espíritos) não é contra a humanidade em geral, senão contra o seu modo zumbificado, que segue transformando tudo em si mesmo enquanto invoca toda sorte de negacionismo. Mas, como muitas vinganças sobrenaturais, isto é, em que naturezas diferentes se chocam, ela infelizmente não diferencia indivíduos. “Eu posso acabar com todos vocês.” Talvez, desde o seu emaranhamento cósmico, isso não seja possível. O mesmo passe de mágica tétrica que transforma toda a vida em mercadoria, transporta e mistura irresponsavelmente genoma pelo globo, nas palavras de Deborah Bird Rose, antropóloga falecida em 2018 que dedicou seus últimos anos de vida ao estudo e à conservação de outro tipo de morcegos, as raposas-voadoras da Austrália, está comprometida com a perversão da morte. Corrompe a morte que sustenta e renova a vida em uma outra morte, que enfraquece a vida, impedindo-a de se reinventar e que tem como destino único a extinção. Agora podemos ver melhor: a dupla pandemia na verdade é uma fita de Moebius. Se há vingança, é contra esse regime. E só há um modo de cortar a fita, arrebentar o ciclo maldito: devolver ao que chamamos natureza os seus poderes políticos, produtivos, criadores. Como disse outra autora que perdemos há pouco tempo, Ursula K. Le Guin, “admit [ir] as pedras em nossa comunhão sagrada; para que as pedras talvez nos admitam na delas” <Late in the day>
No clássico Drácula, dirigido por Tod Browning em 1931, com Bela Lugosi em seu papel icônico, o vampiro se transforma em morcego. À certa altura, ao ouvir lobos uivando para a lua, ele profere as palavras inesquecíveis: “Listen to them. Children of the night. What music they make!”. Hoje, vivemos todos em um filme de terror. Já passou da hora de a nossa política aprender a arte multiespecífica da polifonia - e esta pode ser nossa última chance.
Juliana Fausto
[ sobre Starhawk, sugerimos esta conferência - dublada em português ]